2.2.12

história de gente grande

Memórias antigas de uma vó bonita
e um vô desalmado.

Dona Cida fez um embrulho com a vida dela e deu pro Seu Olívio cuidar. Saiu dos dias tristes de uma solteirice pra morar com ele. Foi com ele que teve filhos, oito. Teve casa, jardim e crianças pra se ocupar.

Se rendia as rezas pra se curar de um ácido cotidiano. Lavava, passava, fazia comida, olhava as crianças, varria, limpava e o Seu Olívio que não vinha, porque foi pro bar. 

Tarde da noite, lá vinha ele com uma garrafa de vinho debaixo do braço e um monte de absurdos pra descarregar. Ela ouvia, dizia amém e ia vivendo, como se aquela fosse sua sina, sem salvação.

Já não sei se isso era amor ou medo. Já não sei onde entrava o respeito nessa história. Digo pela parte dele. Porque Dona Cida quase não falava, não discutia, não teimava. Nula. Passava quase despercebida, sem gesto, sem voz. Era toda resignação.

Os anos passaram, primaveras chegaram e se foram, sem mudanças aparentes na casa ou no coração. Tudo igual, tudo do mesmo jeito. As dores nos mesmos cantos, a solidão encardida na parede, os medos brotando do escuro, o marido bêbado, o choro engulido, a mão erguida, o rosto que aceitava.

Um dia Seu Olívio caiu enfermo. Teve febres, dores pelo corpo. Caso de morte, disse o médico - dura pouco. E Dona Cida se pôs a rezar por aquele homem que não a amou, aquele homem que transformou os seus dias em cinzas sem fim. 

E ela lá, fazendo canja, dando de comer, trocando, dando banho, sempre com o maior amor do mundo, porque era tudo o que ela sabia fazer. Ela era aquilo e pronto: amor da cabeça aos pés.

Depois que Seu Olívio morreu, Dona Cida deu pra variar. Pôs o olhar numa terra distante, talvez do lado de lá. Um olhar assim vago, assim triste, sem brio. Ela não soube mais o que fazer com a vida dela.

Não tinha mais obrigações, não tinha insultos no final do dia, não tinha mais a quem amparar com suas mãos delicadas, com sua alma gentil, suas palavras doces que embalavam crianças e gigantes.

Sobrou vida. Faltou bula e modo de usar.

por Cris Carvalho


Deixo aqui duas belezuras da Roseana Murray que me inspiraram a escrever esse texto (que há muito queria vir à tona, mas que me doía inteira). As belezuras se encontram no livro Retratos, que despertam as mais doces (ou amargas) lembranças.

A Avó

A avó tem cabelos muito brancos, curtos e lisos. Pouco cabelo. A pele é toda enrugada. Parece que já está virando árvore. O corpo também é pequeno. Ela toda parece um pássaro. Usa um xale de renda na cabeça e nas mãos carrega sempre um livro sagrado e cheiro de cebola. Tem passos miúdos. Às vezes parece orvalho. Já está quase desaparecendo, dá pra notar. Os olhos pousados em coisas distantes, invisiveis navios, alguma terra do lado de lá?

O Avô

O avô não tem a doçura da avó. É sério, grande, pesado. Talvez pareça um urso. Come a comida que a avó prepara e sente um grande sono. E dorme e sonha que é jovem, ardente, apaixonado. Como um jovem urso.

5 comentários:

  1. Que lindo, Cris!
    Ah, dona Cida é tão doce...
    Lendo seu texto me veio em mente a música do Chico: Com açúcar, com afeto. :)

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  2. Até as histórias mais tristes e difíceis, ficam lindas narradas por ti!

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  3. Uma história triste e bonita ao mesmo tempo!
    As suas palavras cativam!
    Beijinhos

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  4. Cris, estou assim... Meio perplexa! Metade mulher, metade menina, lendo e escutando tuas palavras que me levaram ao passado, revirando minhas ilusões que eram grandes atrações.

    Ai como é verdade a descrição da avó. Doeu até, pq lembrei da minha que já descansa.

    E a figura do avô então? Era urso mesmo, mas não fazia parte da turma dos ursinhos carinhosos...rs Que pena! Mas eu amei assim mesmo.

    E Dona Cida, pau pra qualquer obra, veio ao mundo para guiar almas.

    Lindo , lindo tudo que escreves, moça! Sou tua fã ;D
    meu afeto
    obrigada por estes momentos.

    bj

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'Que seja doce o que vier. Pra você, pra mim.'