A todos que tiveram uma infância sem medo
e que ainda moram dentro dela, como se vivessem
presos pra sempre num domingo azul e grande.
"Eu vim aqui me buscar. E aqui parecia ser longe, muito longe do lugar onde eu estava
Vim aqui me buscar. Aqui, no meu coração." - Ana Jácomo -
Hoje, vim aqui pra falar de mim. Do eu-menina. Do-eu-na-esquina, brincando de bola até altas horas da tarde. Do eu-que-fantasiava e nem se queixava da falta de sorte. Do eu-moleca que deixava as meninas brincando no quarto enquanto fugia pra casa do vizinho jogar futebol de botão com os meninos.
Por que é que a gente tem que crescer, heim? Não dá pra reverter isso, não? Se fosse pra escolher, escolheria a minha mesma infância, com minhas poucas bonecas , minha casa que só tinha portas e janelas, minha avó que ficava do lado, que me abraçava quando a mãe ameaçava surra, o mesmo avô que, mesmo me metendo medo, com todos aqueles pretos velhos esparramados pela casa e seus artigos de mandingas, queria-o também aqui.
Queria minha bate-palminha que se estraçalhou depois de emprestada, minhas panelinhas que faziam comida de barro, os nossos risos todos ecoando pela casa depois de um dia grande.
Amigos eu tinha aos montes, os melhores. Os vizinhos, não queria outros. Queria a mesma rua, com as mesmas brincadeiras, com os mesmos tijolos pra desenhar os mesmos sóis, com cachorro latindo no fundo e a dona rosa esbravejando no portão.
Tudo era muito simples e por isso mesmo, muito bonito. Nada de fricotes, nada de quero-aquilo-mas-não-posso-comprar. Tudo me era permitido e eu não queria muito. Queria só o quintal pra brincar, o pé de abacate pra eu trepar, o louro que gritava meu nome, os vizinhos de Santos que vinham nas férias e que eu adorava.
Hoje, sentada aqui, eu vejo ainda minha vó Bel no fundo do quintal torrando café. Era tão esmerosa com as mãos, como se estivesse mesmo era cuidando de gente. Depois de torrado, ela o coava naquele coador de pano, três horas da tarde era horário sagrado. Café pronto, pão com manteiga à mesa.
À tardinha, hora que o sol baixava, lá vinha o pai voltando do serviço, com a trouxa nas costas e a fome maior do mundo. Mesa já estava feitinha, esperando-o com um belo prato de arroz e feijão. Bendito seja Deus que pôs comida no nosso prato. mas vou confessar uma coisa: nunca tivemos o costume de rezar antes de comer, porque a fome era tanta que mal se colocava os pratos à mesa, a comida já era engolida. deus deve de ter sabido perdoar.
mas triste mesmo foi o dia em que, decidido sair de lá pra nunca mais voltar, meu pai resolveu mudar de casa, depois desse dia, eu nunca mais teria calor de vó. nem comida no fogão à lenha, nem cafézinho às tres da tarde. como me doeu ter saído daquela casa. casa essa que vive, ainda hoje, na minha imaginação.
e eu pra sempre, ali, com um vestido de algodão todo-azul, como num álbum de fotografias, correndo pelas ruas da memória, bebendo sonhos, pisando firme no chão quente da minha família, recordando os abraços -de- cada- dia- que- não -temos- hoje, os sorrisos espalhados e jamais esquecidos.
esta tarde, tão eu-comigo, sentada na minha casa que tem portas e janelas, mas que não me traz de volta minha infância perdida, meus sonhos incríveis, minha felicidade infinita.
PS: doeu escrever isso aqui. perdoem-me se eu os fiz chorar, fazendo-os recordar da própria infância esquecida há tempos, mas é que me veio esta tarde, uma vontade louca de voltar na memória do coração e ficar morando por lá.
E que numa tarde como esta,
você tenha muita história pra contar,
pra sarar as feridas e viver de sonhos,
porque sonhos não envelhecem, eles apenas
mudam de cor!
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